01 outubro 2006

Dogville: o retrato de uma doença



Para estrear isso aqui, nada melhor do que o Von Trier, num filme que eu considero clássico. Fiz um ensaio sobre ele, apresentado no Segundo Encontro Regional de Comunicação. E uma leitura bíblica do filme, associando os personagens às figuras bíblicas. Ficou bem interessante. Quem quiser, deixa o e-mail no comentário que eu envio o texto.

E bem vindos ao meu novo blog!

Partindo do princípio de que a sociedade norte-americana é uma sociedade doente, podemos enxergar o longa-metragem Dogville, do dinamarquês Lars Von Trier, como um palco de análise sistematizado didaticamente para melhor entendermos este emaranhado e complexo way of life.

O longa-metragem é cheio de peculiaridades, pois é uma obra originalmente cinematográfica. Como tal, isto implica que o produto final é um resultado direto da intenção artística do seu diretor. Daí dizer que o filme é um palco – e literalmente o é – para que possamos compreender passo a passo o que se está querendo transmitir. E lembremos que esta é a visão de um grupo de pessoas, quando não de uma única apenas, e, por isto mesmo, um modo de interpretar o que acontece nos Estados Unidos.

E esta “doença social” que atinge a sociedade norte-americana é causada por um vírus que ataca áreas específicas do cérebro e do coração, de modo que habilidades como o respeito, a honestidade e às vezes, até mesmo, a razão ficam temporariamente abaladas. Se a doença se prolongar por mais de um mandato da presidência, ela pode se tornar crônica e, então, tais alterações no organismo causam danos irreparáveis do ponto de vista humanitário. Tal doença envolve primordialmente três conceitos/“sintomas” básicos: orgulho, egocentrismo e sucesso (conceitos que mais poderiam se chamar “pré-conceitos” uma vez que tratam-se de significados bastante subjetivos) e atinge a grande maioria da população, uma vez que o agente transmissor são os meios de comunicação de massa.

Sucesso porque há uma pressão sócio-psicológica, por assim dizer, para que cada indivíduo tenha sucesso na vida. E isto não significa um incentivo para que as pessoas não desistam de seus ideais, mas, sim, uma pressão psicológica que desrespeita toda e qualquer forma de individualidade. De modo que se um norte-americano não tem dinheiro, um alto e respeitado cargo dentro de uma corporação que possui filiais do Japão ao Sri Lanka – o que confere mais uma estupidez de equiparação cultural e econômica, mas que deveras funciona, haja visto o sucesso dos fast-foods no Brasil – , mulheres caindo aos seus pés – mesmo que sejam secretárias gordas e com uma leve queda por escândalos internacionais – , dinheiro, um horário de trabalho flexível, uma certa fama pelo menos dentro da sua profissão e dinheiro... Bom você então é um ninguém, um John ou Jane Doe, como eles gostam de chamar.

E aí caímos no egocentrismo, que envolve e engloba os outros dois sintomas. Qualquer coisa que fira, mesmo que superficialmente, essa idéia burra que eles têm de que são os melhores, tem seus dias contados. Haja visto a guerra infundada contra Bin Laden e Sadam. Infundada e fracassada, diga-se de passagem. Ambos feriram o ego norte-americano e, a qualquer custo, haveria retaliação. A qualquer custo mesmo porque dinheiro eles têm e vidas,... Quem se importa com os soldados? É pra isso que eles são pagos.

Os norte-americanos têm dentro de si um orgulho tão grande (de serem os melhores, de serem os primeiros, de serem capazes – e assim todos que não podem sê-lo são discriminados – , de sua coca-cola estar por toda parte – e observe que coca-cola deixou de ser um nome próprio para se tornar um substantivo comum e vai chegar a ponto de dizermos ao bartender algum dia: “Me vê uma coca-cola Pepsi!”, mas, enfim, esta é uma outra discussão!), que isso acaba por incutir em suas vidas uma necessidade enorme de serem felizes. “De serem felizes” no sentido mais amplo e portanto, desrespeitando mais uma vez a subjetividade de um conceito. Kant destacou muito claramente este ponto ao manifestar na “Crítica da Razão Prática”(1788) que a felicidade é “o nome das razões subjetivas da determinação [o grifo é nosso]” e, portanto, não é redutível a nenhuma razão particular. Daí a não podermos cogitar a cerca do que se pode ou não trazer felicidade a um indivíduo.

Mas o que isto tem a ver com Dogville? Bom, segundo o próprio diretor, Dogville é uma crítica à sociedade norte-americana. As metáforas são sutis, os exemplos mais ainda. Muito embora alguns possam achar que o filme é exagerado, extremado, percebemos que aquilo faz parte da representação, do recontar. Segue-se aqui a linha de pensamento de que aquilo que choca no cinema é aquilo que mais fica guardado na mente das pessoas. E como diretor experiente, Von Trier sabia disso, sabia que por mais crítica que tivesse seu filme, se as pessoas não se lembrassem dele, não haveria repercussão, discussão ou análise mais profunda sobre ele, ele procura chocar pois senão seu propósito de afetar não seria atingido.

O filme é, por si só, uma exemplificação: parte do singular para tentar explicar o geral. Cada pequena coisa que acontece em Dogville, cada pedacinho do cenário, da iluminação, dos diálogos têm o propósito único e simples de serem a ponta do iceberg. Até a “crucificação” da personagem principal, Grace (quando eles colocam o dispositivo anti-fuga: um grilhão de ferro preso em seu pescoço, soldado a um sino e preso por um enorme prego e uma corrente que trazia uma roda, também de ferro, muito pesada), remete ao quão os americanos estão arraigados naqueles pensamentos.

Cada personagem se refere a um sintoma específico desta “doença social”. A mãe traída com vários filhos para criar (orgulho ferido), o filho rebelde (egocentrismo), a deficiente (incapacidade de produzir, e, portanto, escória), a negra empregada doméstica (incapacidade de ser branca: racismo inerente), a dona da loja (capitalismo), a assediada sexualmente (Mônica Lewisnky: orgulho ferido), os Tomas Edsons (ao mesmo tempo luz e traição, poder e egocentrismo). E todos, cada um a seu modo, tira proveito da jovem e bela Grace, que representa, a cada um particularmente, um mundo a ser conquistado, seqüestrado, sugado. Até o mais idiota dos personagens, o mais manipulável, consegue ter sua parcela de paliativos. Eles se encontram em tamanho desespero interno que vêem na primeira pessoa que aparece o seu nirvana pessoal, sua salvação e sua destruição. Ela é o petróleo, a Floresta Amazônica, o buraco na Camada de Ozônio, a água no Oriente Médio, o potencial bélico, os países do Terceiro Mundo, Hollywood... E cada um tenta vender a ela sua Coca-Cola (agora, sim, o nome próprio), sua Nike, Microsoft, Sony Entertaintment Television, enfim, sua água engarrafada, que nada mais é do que água de torneira com um rótulo colorido e uma marca no mercado.

Uma visão inteligente, cética e fatalista do american way of life. Von Trier dá indícios de como as coisas funcionam por lá e coloca, até no próprio cartaz do filme, os dizeres “uma pacata cidade não muito longe daqui” como um alerta às pessoas de que a “doença social” estadunidense que, cada dia mais, parece ser incurável e que transpõe tantas barreiras, está perto de você e você deve se preocupar com ela.

Enfim, um excelente filme para alimentar uma possível aversão aos Estados Unidos. Ou três belas horas de Nicole Kidman engolindo todo tipo de sapo para depois, bom... não vamos contar o final...


(“Dogville”, 2003, Lars Von Trier)

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, Lívia... Achei o link pro seu blog lá no mídiapop. Desculpe por invadir o lugar assim e tal, mas posso ser a primeira chata a pedir o seu trabalho por e-mail? Adoro muito esse filme, ou! Sempre quis ler o ensaio de vcs, mas nunca tive coragem de pedir procê ou pro Frederico! :-) Blé! Beijos!